Pergunto quase em tom de cumplicidade: “?Es Cannabis?!” . Responde que sim. Volto: “?Está permitido aquí em España?”. “Non, claro que non!”.
Por: Epiphânio Camillo – Especialista em TI, vice-presidente da ACMinas e articulista
“O dia ensolarado, e com temperatura amena, exacerba o privilégio das três horas de puro encantamento com Alhambra, fortaleza e monumento incrustrado na colina La Sabika, de onde se avista o bairro Albaicín, antiga cidade muçulmana, o vale Assabica e Antequeruela. A cidadela compreende vários palácios construídos entre 1200 e 1350 nos reinados de Maomé I, fundador da Dinastia Nasrida. O complexo foi semidestruído por inúmeras vezes até que Carlos V, por volta de 1500, o restaurou modificando parte da arquitetura para o estilo Renascentista.
Por todos os lados notam-se as mesclas do mourisco e a competente e modernizante influência italiana. Enfim, uma das maravilhas do mundo cobiçada ao longo de séculos. No retorno ao centro da cidade, peço ao atencioso motorista de táxi que indique o melhor lugar para experimentar comida italiana. Indaga: “Não gosta das especialidades da Andaluzia?” Respondo sim, “con mucho gusto, pero” já chegara o momento de avaliar o grau da “pasta asciuta” com salsa bolonhesa de España, com minha régua do Província di Salerno, de minha Belo Horizonte. Por onde ando comparo e avalio o “ragù alla bolognese”.
Só em duas ocasiões encontrei sabor equivalente: no inesperado Restaurang Michelangelo da Västelanggatan, em Estocolmo, e no Ristorante Grassilli, de Bologna. Neste, seria querer muito que a “ricetta originale” pudesse surpreender. O motorista não entende bem o que lhe digo, mas continua o percurso mostrando tudo em volta e a explicar, entusiasmado, a história de Granada. Chegamos. Desço no início da Calle Gran Via de Colón e a vou percorrendo até encontrar o vazio Mamma Mía, onde me fixo por algum tempo. Peço sugestão para o “almuerzo: vino, quesos, jamón pata negra”. Contudo, faço questão de definir o prato principal: Tagliatelle com Ragù alla Bolognese. Era o que desejava.
Enquanto aguardo, miro pela janela o andar calmo e lento dos passantes naquela tarde de novembro. Lá fora um frio gostoso, céu azul levemente pincelado com nuvens esparsas, brancas e mansas. Tão tímidas, pareciam pedir licença para ali repousar. Tranquilidade e paz emergiam do semblante daqueles coadjuvantes dos meus devaneios, preenchendo o ambiente que eu criara. Nenhuma pressa nem tensão aparente. Vem à lembrança Cecília Meireles: “Bem que a vida estava quieta, mas passava o pensamento”. Fixo esse instante na memória imaginando um quadro que colocaria em qualquer de minhas paredes à guisa de janela.
Não com a frequência desejada, faço isso às vezes: olho parede lisa e branca e percorro as várias janelas que tenho guardado em meu repositório de muitas gratas emoções. Com algum esforço, tal como Samira de Jorge Amado, “fechando os olhos para enxergar melhor”, retorno aos meus postos de observação misturando aleatoriamente sensações e paisagens sem qualquer limite geográfico. Num átimo pulo de Sidney para Londres, de Chartres para Pequim, de São Francisco para Cusco. E viajo novamente. Agora poderei incorporar ventanas de Granada ao meu acervo e a elas retornarei quando quiser e de onde estiver, mesmo nas frestas das minúsculas janelas com venezianas do Beco dos Canudos de Pitangui.
Basta-me uma parede branca. “Janelas são metáforas plurais que simbolizam possibilidades e limitações. Podemos ver através delas, enxergar novos horizontes, descortinar paisagens, explorar espaços, descobrir interesses. Ao limitar movimentos, aprisionar ímpetos e impedir veemências, convidam à reflexão. Por elas – e através delas – podemos viajar como que a folhear roteiro que vamos construindo.” Não sei bem por que em algumas ocasiões me vem à lembrança o filme Playtime, de Jacques Tati. Registro que faço, embora pouco me importe no momento. Estranho, mas…
Dispenso o café da Mamma Mía, pois já tenho novo destino: do outro lado da Gran Via vislumbro cafeteria que tem janelas maiores. É para lá que vou depois de ter sido despertado desse sonho de olhos abertos pelo aviso burocrático, atencioso e inconveniente da gentil atendente: “Vamos a cerrar”. E o encanto fugiu. Após novo pouso retorno à doce lida de vagar rumo ao hotel, porém sem destino nem indicações precisas. Vou indo embrenhando-me pelas ruelas, preferencialmente por aquelas que mais parecem labirintos. São agradáveis e preciosas as surpresas: de repente abrem-se pequenas praças que nem sempre constam dos roteiros nem representam atração ou sequer são percebidas pelos próprios moradores.
Ora um banco de pedra ou de madeira solto num canto, ora ventanas atraentes, ora portas machucadas pelo tempo com platibandas improváveis e curiosas, ora teimosos e remanescentes muros centenários, ora o desenho irregular no piso de pedras desalinhadas sem concessões aos ângulos retos. Descuido na construção? Creio que não! Talvez sensibilidade que emana da arte distraída e sem as amarras dos mandamentos e estruturações de modelos ou manuais. Afinal, arte nada mais é do que percepção exposta… e está por toda parte, filosofo. Passo pela Catedral, que estava fechada.
Ao lado encontro tienda de regalos que tem, rente à parede, estante onde pequenas caixas de madeira bem cuidadas, superpostas e alinhadas em forma de escada. Contêm ervas e especiarias anunciadas como raras. O colorido descuidado do arranjo cria bonito mosaico. Merece uma bela foto, imagino. Antes, porém, peço autorização ao vendedor que estava à porta a me observar. Ele acena, concordando. Sobre cada um dos pequenos canteiros a indicação dos respectivos conteúdos: Cola de Caballo, Manzana Turca, Cardo Mariano, Flor de Azahar, Stevia, Mil Flores, Lavanda, Camomila, Cannabis…?
Cannabis?! Olho imediatamente para o vendedor que sorri diante da minha surpresa. Pergunto quase em tom de cumplicidade: “?Es Cannabis?!”. Responde que sim. Volto: “?Está permitido aquí em España?”. “Non, claro que non!”. “Luego!…”. Semblante maroto, e quase gargalhando, volta a responder: “Lo vendemos como té, pero se alguien quiere usar Camomila para fumar no podemos deternelo.” Pano Rápido! (17/11/2015)”
José Aparecido Ribeiro é jornalista e editor
www.zeaparecido.com.br – WhatsApp: 31-99953-7945 – jaribeirobh@gmail.com
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