Magra, pescoço longo, boca nua e bem desenhada, rosto pequeno, nariz afilado. Parecia uma delicada e frágil boneca de louça…
Por: Epiphânio Camillo*
“Malmö. Estou no centro histórico. Desço pela Avenida Hjälmaregatan, atravesso pequena ponte e sigo em direção à Praça Lilla Torg. Na terceira esquina entro na Rua Södergatan. Próximo a um cruzamento com pequena ruela, vejo alguns bares e restaurantes com mesas no passeio estreito. Escolho um. Critério? O que tenha mais clientes com aparência de aborígenes; não quero refeição para turista. Nome estranho: Mando Bar.
Entro, localizo mesa vazia, busco a atenção da garçonete e faço sinal com o polegar solicitando permissão para ocupar lugar junto à janela frontal. Devidamente autorizado, abro o cardápio todo escrito em língua que não conheço e “leio” duas ou três páginas de cima a baixo apreciando com curiosidade aqueles aglomerados de letras, consoantes acentuadas, vogais cortadas, sinais esquisitos e palavras impronunciáveis.
A garçonete, Sønja, louríssima, vinte e poucos anos, aproxima-se rapidamente, aponta para o cardápio e começa a falar. Faz uma pergunta. Respondo com “hamham” convincente. Ela prossegue, toma o cardápio das minhas mãos e coloca sobre uma das páginas o dedo finíssimo de unhas longas bem cuidadas, pintadas de azul-claro brilhante, apontando quatro ou cinco itens. Encaro-a curioso fingindo naturalidade.
Percorro sua figura com os olhos cuidando evitar parecer intruso e agressivo. Cabelos penteados maria-chiquinha, rabo-de-cavalo, franja desalinhada sobre a testa branca e lisa. Magra, pescoço longo, boca nua e bem desenhada, rosto pequeno, nariz afilado. Parecia uma delicada e frágil boneca de louça.
Embora a pouca estatura, o conjunto dava impressão de ser alta e esguia. Uma bela ilusão de óptica! Presto muita atenção nos lábios levemente rosados e no que ela diz, na melodia agradável e incompreensível das palavras pronunciadas com voz suave, mas firme. Compareço ao “diálogo” com mais dois ou três “hamham” e faço sinais de aprovação com alguns sutis acenos de cabeça.
Percebo uma beleza inusitada no jeito decorado que ela tem de dizer aqueles sons, no contorcionismo ritmado da pequena cabeça, no revirar dos olhos azuis-turquesa, ora mirando o cardápio ora fitando o teto, burocraticamente balançando com naturalidade os braços para os lados, encolhendo levemente os ombros como que em busca de impor mais credibilidade ao que fala.
Pergunta algo novamente, e como êxito em responder, me olha firme, entre curiosa e severa. Respondo em raso inglês que não havia entendido nada do que dissera, pois nem sabia com certeza que língua falava, embora suspeitasse sueco. Surpresa, por alguns segundos muito séria, depois encabulada, sorri e pergunta: “Você não é sueco? de onde é? que língua fala? Brasil? então fala espanhol?” Digo que sim, falo espanhol, embora o idioma brasileiro seja o português.
Ela sorri novamente e explica que estava dizendo que infelizmente alguns pratos não estão sendo servidos naquela tarde e coisa e tal. Faço o pedido e “la nave va”. Terminada a refeição, café, conta, cartão de crédito, sem mais palavras levanto-me. Já quase na porta de saída, percebo que ela me acompanha de longe. Agradeço com um pequeno gesto à guisa de adeus. Ela dá tchauzinho, faz sinal de OK com o polegar e segue em frente com a bandeja. Vou embora. Dali sei que, talvez, para sempre.
Já na rua, chuvisco fino, caminhando sobre o passeio estreito e desviando de pequenas poças d’água, começo a sorrir comigo e para mim mesmo ao descobrir que em Malmö, numa tarde em certo dia no mês de maio, por alguns instantes fui percebido como fluente no idioma sueco. 05/05/1991.”
*José Epiphânio Camillo dos Santos é administrador de empresas, natural de Pitangui, Minas Gerais. Graduado pela UNA, possui especialização em Informática Aplicada pela ACTIM, em Paris. Participou de programas de gestão avançada no IMD, em Lausanne, Suíça, e no INSEAD/FDC, em Fontainebleau, França. Epiphânio é vice-presidente da Associação Comercial e Empresarial de Minas (ACMinas) e articulista no Blog Conexão Minas.
José Aparecido Ribeiro é jornalista e editor
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