O pensador norte-americano Noam Chomsky alcança o mérito incomum de ser respeitado pela esquerda e pela direita, falando mal dos dois lados. Ele não tem compromisso com a ideologia, mas com a razão. Maior crítico da política externa norte-americana desde a época do Vietnã, foi o mais corajoso opositor de Bush em sua “guerra ao terror”. Costuma dizer que os liberais e os comunistas se igualam. Há uma aristocracia da direita e um centralismo da esquerda que desprezam o povo. “Eles” sabem o que é bom para todos
Além de pensador político, Chomsky é considerado o maior linguista de nosso tempo, tendo criado a gramática gerativa, a mais ambiciosa teoria sobre a aquisição e funcionamento da linguagem. O filósofo e ativista político é professor no Massachussetts Institute of Technology (MIT) e autor de mais de 30 livros nas áreas de filosofia da linguagem, linguística, ciência política, comunicação e relações internacionais. Intelectual público, quando ele resolve falar, é bom ficar atento.
É o caso do livrinho Mídia – Propaganda política e manipulação, que está sendo lançado no Brasil pela Editora Martins Fontes. Chega num momento simbólico: ano de eleições, crise nos meios de comunicação (que tem feito o mercado se movimentar em busca de nova inserção econômica e política), expectativa de mobilização social contra a Copa do Mundo e falta de serviços de qualidade. Escrito para a realidade americana, o livro é uma contribuição para nosso momento histórico.
A reflexão de Chomsky se arma sobre um antigo problema: qual o papel da mídia numa democracia? A resposta automática é que, garantida a liberdade de informação, a comunicação é um insumo indispensável para que as pessoas levem vidas autônomas, tomando decisões a partir de fatos. No entanto, é preciso voltar um degrau: afinal, de que democracia estamos falando? Chomsky descreve então, com singeleza, nosso cenário democrático como um regime em que poucos mandam em muitos. Os poucos se julgam melhores e acreditam que sabem o que é melhor para o povo.
Para o pensador, o que se estabeleceu nas chamadas democracias liberais foi um arranjo de classe, uma democracia de espectadores. O povo, na verdade, nada mais é que um “rebanho desorientado” (a expressão é de Walter Lippmann), carente da palavra ordenadora dos bons. O povo não existe para agir, mas para seguir ordens. E é aí, na garantia da obediência à palavra de poucos (sempre interessados em manter o poder), que a mídia faz seu trabalho antidemocrático.
Para Chomsky, a “classe especializada” – que Marilena Chauí chamaria de detentores do discurso competente – emite um imperativo moral: a população é simplesmente estúpida e precisa ser guiada. A propaganda (e em parte o jornalismo), é garantidora da moral de rebanho. Para isso, além de princípios gerais, mandam sinais que confundem e distraem. Um exemplo próximo são as manifestações de rua. Todos defendem uma democracia viva e vibrante, mas desde que não atrapalhe o trânsito na hora do rush. Como afirma Chomsky, “certifiquem-se que permaneçam, quando muito, espectadores da ação, dando de vez em quando seu aval a um ou outro dos verdadeiros líderes entre os quais podem escolher”.
Essa democracia de procedimentos formais, da qual a eleição é um fiador mais teatral que verdadeiro – não se fala em distribuir poder ao povo, mas de mudar quem exerce o poder em seu nome –, se encontra em plena vigência em nosso momento eleitoral. Nada mais próximo à lógica da propaganda que buscar bandeiras universais, como combate à corrupção, à incompetência e à falta de produtividade. No entanto, os projetos em jogo não se resumem aos nomes que estão na ponta do processo. Debater política não é escolher pessoas para mandar nas outras. Vem daí, por exemplo, o vício de fazer da vida privada uma assunto público em época de campanhas.
O que está em jogo são projetos de sociedade. Quem reclama das garantias trabalhistas ou dos reajustes do salário mínimo acima da inflação não está defendendo a racionalidade econômica, mas a exploração do trabalho. É preciso que isso fique cada vez mais claro. A mídia, se quiser recuperar seu papel na democracia, tem que fazer esse debate fluir, e não ficar a reboque dos jogos de interesse.
Chomsky manda dois alertas, ambos incisivos: o primeiro é que o povo não quer mais ser rebanho. Quem pensa em construir consensos a partir daí vai se dar mal. Pode ficar com a pior das consequências para a indústria da informação: a irrelevância. O segundo aviso afeta a própria concepção de democracia que nos envolve. Ninguém está disposto a abrir mão do poder para o outro. A democracia direta, participativa ou que nome se queira dar, é o horizonte de sobrevivência da política. Isso aponta para a mudança de gestão e para novos modelos de ingerência nos rumos da sociedade. O pau vai quebrar. É o melhor que temos para hoje.