O texto é do Pesquisador do IPEA, Arquiteto e Economista, especialista em cidades, Thiago Jardim. Formado no Instituto de Tecnologia de Ilinois, em Chicago – USA, com larga experiência em pesquisas acadêmicas.
Ele vem alertando autoridades e construtores sobre os efeitos nefastos do Plano Diretor de BH para o futuro da capital e faz previsões que deveriam servir para nortear as políticas públicas.
Se de fato fossem comprometidos com os interesses da cidade, legisladores, secretários de governo e o próprio prefeito prestariam atenção no alertas deste especialista.
Vale a pena ler e refletir a respeito, pois o trabalho é fruto de pesquisa e farto material científico, sustentando a tese de que BH caminha no sentido oposto ao que devia quando o assunto é ocupação dos espaços para edificações e coeficientes de aproveitamento. O Planejamento Urbano atual é diametral às tendências conferidas em cidades bem sucedidas.
*Como o planejamento urbano afeta a economia das cidades.
Por Thiago Jardim 23 de agosto de 2019
“Os direitos de propriedade e o mercado de terras marcam a transição social para o capitalismo e democracia.
A garantia dos direitos sobre a propriedade e o mercado de terras são marcos civilizatórios essenciais para a desconcentração do poder econômico e a consolidação de democracias. Essa é a constatação de Daron Acemoglu(MIT) e James Robinson (Harvard) no livro “Por que as nações fracassam”. A luta por direitos de propriedade na Inglaterra foi fundamental para a instituição do parlamento (1265) e do Estado de Direito (1689), extinguindo o absolutismo e fomentando a expansão financeira e comercial que levou à revolução industrial (1760) e ao período de urbanização e crescimento econômico que tomou o mundo nos séculos seguintes.
Paul Romer (NYU, Nobel 2018), demonstra que o aumento de 1% na proporção da população urbana de um país reflete no crescimento da renda per capita em 2% em média. Dentre as principais razões para este fenômeno estão a construção civil e as economias de aglomeração, que são os benefícios adquiridos pela proximidade entre pessoas e empresas na produção e aquisição de bens e serviços. As melhores oportunidades de trabalho e o acesso a bens e serviços aprimorados levaram à migração da população rural para as cidades e a proporção da população urbana mundial passou de 7% em 1800 para 54% em 2015.
Protagonista da revolução industrial, a taxa de urbanização da Inglaterra saiu de 20% em 1800 para 78% já em 1900. O Brasil ainda era um país agrário, com 80% da população vivendo no campo. Na Inner London, região interna do território londrino com área equivalente à de Belo Horizonte (aproximadamente 330 km²), habitam 3,5 milhões de pessoas, um milhão a mais que em BH. A região londrina foi construída com um índice de aproveitamento médio de terrenos de 2,6, variando entre 1 e 8 até 1994 quando, apesar de interesses na preservação de sua identidade histórica, se aboliu o controle de altura no centro, impulsionando construções como o 20 Fenchurch Street, edifício com índice de aproveitamento de 30 vezes a área do terreno. A altura média das edificações na região é de 11,2 metros, aproximadamente 4 pavimentos, o que reflete em uma densidade urbana de 10.000 habitantes/km² com renda per capita superior a € 5 mil euros por mês.
Em um contexto histórico marcado pela ausência de mercado de terras até a Lei de Terras de 1850 e a ausência de mercado de trabalho para quase 40% da população até a abolição da escravidão em 1888, a tardiaindustrialização e urbanização no Brasil vêm desconcentrando gradualmente os recursos na sociedade, mesmo que de forma insuficiente, deixando parte da população ainda marginalizada. O cálculo do índice Herfindahl-Hirschman já revela um alto nível de desconcentração de propriedades na cidade de São Paulo, desconfigurando qualquer hipótese de influência da especulação na acessibilidade ao mercado imobiliário da cidade, embora o déficit habitacional no Brasil continue elevado (6,3 milhões de domicílios). O Brasil ainda é um país em desenvolvimento e, com a democratização do país (1985), ao invés de fortalecer os direitos sobre as propriedades, a constitucionalização da função social da propriedade (1988) tem implicado em consecutivas reduções do potencial de uso do solo urbano, suprimindo a construção civil e os mercados, limitando o potencial de receitas de empresas e o direito dos proprietários sobre o valor de suas propriedades.
ESTATUTO DAS CUDADES NECESSITA DE REVISÃO
O mais recente plano orquestrado pelo antigo Ministério das Cidades, aprovado nas Câmaras Municipais de São Paulo (2014), Curitiba (2016), Salvador (2016), Belo Horizonte (2018) e outras, reduz o potencial de aproveitamento dos terrenos nas cidades para 1 (uma vez a área do terreno), transfere a posse do direito de construção adicional ao Executivo municipal e institui a outorga onerosa para a concessão desses direitos. De acordo com a Secretaria Adjunta de Planejamento Urbano de Belo Horizonte, a ideia parte do princípio de que “o proprietário adquire um terreno onde o direito de uso está limitado à sua área e que a mais valia oriunda da possibilidade de se construir acima desta metragem foi criada através dos benefícios implantados com recurso público no entorno e deve ser recuperada pelo poder público”.
EXEMPLOS A SEREM SEGUIDOS
Em economias de mercado, a consolidação do ambiente construído é fruto das condições de oferta e demanda por espaços e varia entre locais e cidades. Ruas dotadas de mesma infraestrutura podem ser ora muito desenvolvidas ora deixadas totalmente vazias, refletindo os interesses de mercado. Por causa de restrições tecnológicas relacionadas à estrutura das edificações e à altura de escadas de combate a incêndio, Londres foi construída até 1930 respeitando leis que limitavam a altura dos edifícios a 25 metros. Em Chicago, por sua vez, à medida que as propriedades centrais se valorizavam, elas estimularam inovações na estrutura dos edifícios e na tecnologia de elevadores possibilitando construções mais altas que diluíam o custo da terra, ofereciam belas vistas da cidade e otimizavam o uso do solo. “O arranha-céu é uma máquina que faz a terra se pagar”, afirmava o arquiteto Cass Gilbert em 1900 após a construção do Home Insurance Building, o primeiro arranha-céu moderno do mundo. Trinta anos depois, Nova York ergueria o Empire State Building, então o edifício mais alto do mundo com 440 metros e índice de aproveitamento de 25 vezes a área do terreno. Ele custou US$ 380 milhões (em valores atualizados) em um terreno de apenas 8 mil metros quadrados. Hoje seu valor de mercado é de US$ 2,5 bilhões. Ou seja, a mais valia do terreno não é oriunda dos benefícios construídos com recursos públicos no entorno, mas de centenas de anos de evolução da tecnologia de construção em economias de mercado.
MAIS VALIA DE TERRENOS
A mais valia do terreno não é oriunda dos benefícios construídos com recursos públicos no entorno, mas de centenas de anos de evolução da tecnologia de construção em economias de mercado.
O valor de um pavimento nestas novas edificações é sempre inferior ao valor do terreno onde o edifício foi construído, tornando aquela localização acessível a um maior número de pessoas e, ao permitir tal multiplicação do solo, o direito sobre a terra é desconcentrado entre múltiplos proprietários, aumentando a densidade populacional e elevando a demanda por bens e serviços na região, tornando a cidade mais produtiva. Ao invés de um consultório atender três horas por dia, como em uma cidade pacata, o consultório não só passará a atender oito horas por dia, como haverá outros consultórios competindo pela clientela no mesmo local. Otimizando a competição, obtém-se os processos de inovação, especialização e diversificação dos bens e serviços produzidos nas cidades. Os consultórios se especializam em oftalmologia, ortopedia, reumatologia, dermatologia e demais serviços com potencial de mercado.
A otimização do uso do solo se traduz em maiores receitas para lojas e empresas, maior dinamismo e acessibilidade, maiores valores da terra e das propriedades. Edward Glaser aponta que as cidades mais densas nos Estados Unidos e na Europa são 50% a 100% mais produtivas do que as cidades menos densas em seus respectivos países. Mas densidade não se desenha, é determinada pelas condições de mercado locais.
A VALORIZAÇÃO DA TERRA
Já a valorização da terra e dos imóveis é desejável em um mercado competitivo e não se trata de especulação, mas do crescimento da renda e da demanda por imóveis frente a escassez de oferta e sinaliza um ambiente favorável à construção civil. No entanto, o que ocorre atualmente, seja por restrição ao potencial construtivo, atraso para avaliação ou indeferimento de projetos, é a gestão pública dificultando o acesso à moradia e ao emprego na cidade, tornando o imóvel mais caro em relação à renda de quem o habita. Preços de imóveis só caem se a razão demanda/oferta cair. Se o desejo da prefeitura é tornar a cidade mais acessível, é preciso permitir construir mais, e não menos.
Se o desejo da prefeitura é tornar a cidade mais acessível, é preciso permitir construir mais, e não menos.
CICLO VIRTUOSO – NOVA YORK COMO EXEMPLO
Nestes ciclos virtuosos de demanda e oferta, Manhattan consolida um ambiente construído de 55 km² com índice de aproveitamento médio de 5 vezes a área dos terrenos. A política urbana local concede índices de aproveitamento básico de até 15 e permite a transferência de direito de construção entre terrenos. Os resultados são valores de terra de US$29 mil por m² que acomodam 28.250 habitantes por km², com renda per capita superior a US$7 mil por mês. Manhattan é apenas uma fração do território nova-iorquino cuja região metropolitana possui um PIB de US$1,55 trilhões, 48% do PIB do Brasil na ótica da paridade do poder de compra.
Na leitura de Gary Becker (Nobel 1992), os países só escapam da pobreza quando desenvolvem instituições econômicas apropriadas que asseguram especialmente a propriedade privada e a competição. Mas enquanto algumas cidades se desenvolvem sob o arcabouço institucional de segurança dos direitos sobre a propriedade e incentivo ao trabalho, outras permanecem por muito tempo sob amarras institucionais extrativas, no conceito de Acemoglu (MIT) e Robinson (Harvard), que inibiram o desenvolvimento e a desconcentração do poder.
POPULAÇÃO BRASILEIRA CRESCEU E TEM 81% DAS PESSOAS MORANDO EM CIDADES – ÊXODO RURAL
Até a Proclamação da República em 1889, o Brasil se tratava de um império agrário com apenas três centros urbanos com mais de 100 mil habitantes e grande parte dos 15 milhões de habitantes vivendo em condições de subsistência, sendo 80% analfabetos e 40% descendentes de escravos sem bens ou propriedade alguma. Já no contexto da República, a industrialização e a urbanização propagaram gradualmente os recursos econômicos na sociedade até a consolidação da democracia em 1985. Entre 1900 e 2000, a proporção da população urbana passou de 22% para 81%, a renda per capita aumentou 12 vezes e a expectativa de vida praticamente duplicou de 33,4 para 64,8 anos.
Os países só escapam da pobreza quando desenvolvem instituições econômicas apropriadas que asseguram especialmente a propriedade privada e a competição.
BELO HORIZONTE ADOTA MODELO EQUIVOCADO PARA O PLANEJAMENTO URBANO.
Apesar da evolução sistêmica, os conflitos políticos internos permanecem e as consecutivas reduções dos índices de aproveitamento são particularmente preocupantes em se tratando de um país em desenvolvimento. Os direitos de posse da terra e a sucessão hereditária permaneceram garantidos na Constituição de 1988, mas passaram a se basear na concepção da função social da propriedade, onde o seu conteúdo econômico passa a ser controlado pelo governo local e não pelo interesse individual do proprietário. O conjunto social da obra a partir de então vem sendo a supressão da construção civil com índices de aproveitamento que inviabilizam a sua capacidade de promover e otimizar o desenvolvimento e o acesso à moradia. A estrutura política de Belo Horizonte partiu de um modelo com poucas restrições à construção até 1976 para um modelo extremamente restritivo, especialmente a partir de 1996, quando o potencial de construção máximo permitido por lei era 3. Já na lei de 2010, o índice de aproveitamento básico variava entre 1 e 2,7, sendo a média 1,13 (excluindo área de grandes equipamentos públicos e áreas de proteção ambiental) e o potencial construtivo adicional, permitido via contrapartidas à prefeitura, chegava a 3,4, sendo a média 1,42. Os resultados da restrição ao uso do solo são o espalhamento das construções, o trânsito e o envelhecimento do centro, com a fuga de empreendimentos para outros municípios.
O conjunto social da obra a partir de então vem sendo a supressão da construção civil com índices de aproveitamento que inviabilizam a sua capacidade de promover e otimizar o desenvolvimento e o acesso à moradia.
PLANO DIRETOR DE BH, UM ERRO ESTRATÉGICO, IMPERDOÁVEL
Com a aprovação do plano em Belo Horizonte em 2019, o coeficiente de aproveitamento básico dos terrenos (CAb) — aquele em que o proprietário possui 100% do direito — caiu para 1 em todo o território, afetando propriedades em 102 km². Como uma propriedade é precificada pelo seu potencial de produção no mercado local, a redução dos índices nessas áreas implica que os proprietários não só adquiriram seus bens por um preço superior, como terão que desembolsar o valor da outorga para recomprar o potencial construtivo perdido, comprometendo a viabilidade de empreendimentos principalmente para as pequenas empresas. O potencial de construção máximo (CAmax) permitido via outorga onerosa (ODC) passa a variar entre 1 e 5, com média em 1,74. Mas se o valor da outorga onerosa for 40% do valor do imóvel, o valor residual de direito dos proprietários se restringirá em média a 1,04 (60% de 1,74 = 1,04) e o valor atribuído ao potencial de 0,7 será empossado pelo governo municipal (40% de 1,74 = 0,7). Nesse caso, tudo mais constante, haverá perdas de direito sobre o valor das propriedades em área de 60 km² de Belo Horizonte em relação a lei de 2010.
A redução dos coeficientes de aproveitamento básico para 1 diminui o potencial de aproveitamento em 102 km², o que equivale a 39% da área passível de desenvolvimento da cidade (área total menos ruas, trilhos, praças e lagos). Excluindo das áreas passíveis de desenvolvimento as áreas de proteção ambiental (PA1), as áreas com ocupações irregulares/favelas (ZEIS e AEIS) e as áreas de grandes equipamentos (Ageuc), a redução do potencial de aproveitamento atinge 62% das áreas passíveis de desenvolvimento.
Na ótica do potencial máximo adquirido via outorga onerosa (ODC), ao valor de 40% do preço do terreno, haverá redução de potencial para os proprietários em 60 km². O valor da ODC não foi regulamentado junto com o plano e o estudo está embasado no discurso de membro da SUPLAN em seminário na Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Supostamente, a arrecadação da ODC sobre os novos empreendimentos deverá compor um fundo para a construção de casas populares e melhorias para a cidade. São louváveis as políticas de alívio a pobreza e redução do déficit habitacional, especialmente no Brasil, país em desenvolvimento onde parte da população permanece marginalizada. Entretanto, estas políticas não devem ser conduzidas em detrimento do próprio desenvolvimento.
Em uma cidade com praticamente todos os lotes edificados com índices de aproveitamento próximos a 1 ou mais, o novo plano diretor condiciona a expansão do estoque imobiliário da cidade à outorga onerosa e às diretrizes do planejamento central. A elevação do potencial construtivo máximo em relação ao plano original (PL 1749/2015) melhora as perspectivas de desenvolvimento médio do território em 0,32 pontos, mas traz perdas a muitos proprietários e custos adicionais a outros, podendo minar estas possibilidades de desenvolvimento. O novo Plano Diretor de Belo Horizonte, integrado à lei de uso e ocupação, foi publicado no dia 8 de agosto de 2019, e as novas regras entrarão em vigor após um prazo de transição de 3 anos da sua sanção, podendo ser substituído apenas em 2027.”
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